No país que carregava a missão de ser o celeiro do mundo a palavra mais usada nos últimos meses é desabastecimento. O termo saiu das conversas de produtores rurais e lideranças do agronegócio para as filas de supermercado e para os horários das refeições em que se discutem entre as famílias brasileiras o elevado preço dos alimentos e a falta de itens essenciais da cesta básica.
Mais uma vez, foram elencados pela sociedade os "vilões" dessas altas. Números do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) apontam que no estado de São Paulo, onde a cesta básica é a mais cara do Braisl, o valor subiu, nos primeiros cinco meses do ano, 7,55%. Porém, em alguns outros como Goiás, Espírito Santo, Bahia e Paraíba, essa elevação passou de 12%.
Ainda de acordo com o departamento, os produtos que mais subiram foram a farinha de mandioca, o feijão, o leite, a manteiga e a batata. Economistas e especialistas apontam ainda que, no segundo semestre, esses itens e mais outros como óleo de soja, proteínas animais, iogurte e o arroz devem ficar ainda mais caros. Entre as matérias-primas, destacam-se o milho e o trigo.
O cenário atual se explica, porém, não faz sentido em um país com tamanho potencial agrícola como o Brasil, como explicam analistas e consultores de mercado. A má gestão de inúmeras frentes, no entanto, justifica. As motivações vão muito além das adversidades climáticas já discutidas à exaustão e que ainda estão sendo contabilizadas pelos agricultores. A falta de uma política que pudesse gerar melhor todo esse potencial é velha conhecida dos profissionais do setor e levou a um tempo que já era esperado. Pela primeira vez na história, faltam itens básicos da alimentação do brasileiro, os preços são recordes dada a falta de oferta e são mais de 11 milhões de pessoas desempregadas.
Estoques
Números da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) apontam a situação dos estoques públicos brasileiros em 26 de junho e os números todos são preocupantes, segundo alerta Carlos Cogo, consultor de mercado da Carlos Cogo Consultoria Agroeconômica. Em uma conta rápida, é possível observar os estoques de arroz - de 85.117,773 mil toneladas - respondendo por apenas 0,7% do consumo nacional; os de milho - de 888.503,540 mil toneladas - em 1,6% do consumo - e os de trigo, zerados. O gráfico a seguir traz números ligeiramente menores, nesta terça-feira, 27.
Ainda segundo explica o consultor, a atual condição dos estoques nacionais é reflexo da falta de uma política eficiente que traga equilíbrio para os volumes de importação e exportação, além da inexistência - ou a falta de implementação - de um padrão de segurança a ser seguido para o tamanho destes estoques. Paralelamente, Cogo diz ainda que "não temos estoques porque os preços mínimos não foram reajustados. O produtor precisa, ao menos conhecer e garantir o seu piso, e isso não acontece". No caso do trigo, por exemplo, o preço mínimo só foi conhecido pelos triticultores depois do período de plantio.
Além do mais, os atuais valores estabelecidos na Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) das culturas mais discutidas do momento - milho, trigo, arroz não cobrem, nem ao menos, os custos variáveis de produção, afirma o consultor. Os preços mínimos, os quais deveriam ser uma garantia - e em alguns momentos até mesmo um estímulo - para os produtores rurais em caso de maus momentos do mercado, causados por um excesso de oferta, não cumprem esse papel e se juntam a outras tantas ferramentas de comercialização ultrapassadas e mal empregadas, que não se limitam só à compra de produto, mas se estende para as de venda e também para a armazenagem.
"E o governo não reage a momentos como este com serenidade e clareza, e mostra um total desconhecimento dos problemas, com medidas que não resolvem. Se ele tem que trabalhar zerando sua alíquota de importação de trigo ou reduzindo sua alíquota de importação do feijão, por exemplo, ele deixa claro que perdeu o controle de seu abastecimento interno", diz Carlos Cogo.
Equilíbrio
A busca é, portanto, por equilíbrio e adaptação dos instrumentos de comercialização, para que sejam mais modernos e possam executar sua função da distribuição e ajuste da oferta e da demanda de forma eficiente. E para produtos que não são negociados em bolsas internacionais, como o arroz e o feijão, por exemplo, e que não possuem referências para balizar os preços, a necessidade é ainda mais urgente.
Segundo explica o corretor e diretor da De Baco Corretora de Mercadorias, Marcelo De Baco, essa falta de política sempre caracterizou o Brasil como um mau comprador e um mau armazenador de alimentos e, portanto, o momento atual já era previsto. "Há técnicos na Conab e no Mapa que há anos têm relatórios sobre isso e jamais foram ouvidos. Os interesses comerciais são grandes", diz. "E essa situação de interinidade política que vivemos no Brasil agrava a situação. Temos um enorme potencial agrícola, mas não temos estratégia, não temos uma bolsa", completa o executivo.
De Baco ressalta ainda a necessidade de uma política de garantia de preços que una o mercado ao governo, já que somente uma das frentes atuando mantém a ferramenta ineficiente e sem cumprir níveis adequados para os estoques nacionais. "Deveríamos contar com três meses de abastecimento mantido", acredita o corretor, mas em um ambiente que pudesse garantir liquidez para o produtor rural. "Todo o risco colocado sobre o campo volta para a balança comercial. São 6% da população trabalhando no campo, mas 94% dela correndo um grave risco em momentos como este. É preciso ter planejamento. Ninguém trabalha pelo mínimo", conclui.
Medidas Descontinuadas
As mudanças, na opinião de ambos os especialistas, só tem espaço quando esse planejamento ganhar força e começar a adotar medidas de longo prazo, como prevê, por exemplo, a Lei Plurianual Agrícola (LPA), por exemplo, com medidas que possam garantir a continuidade de regras fortes e importantes para o desenvolvimento do setor. "Não podemos ter novas diretrizes todos os anos, é preciso garantir pelo menos o custeio, a comercialização e o investimento", diz o consultor. E, por isso, avançam no Brasil as discussões sobre o fim dos "Planos Safras" válidos por um ano meses somente. Ainda assim, porém, sua efetivação está distante.
"Mudanças a cada 12 meses vão na contramão do planejamento das fabricantes de equipamentos e implementos agrícolas e dos investimentos por parte dos agricultores. Investimentos em bens de capital e manutenção da viabilidade econômica e financeira das empresas produtoras de máquinas e implementos agrícolas, incluídos aí os fabricantes de tratores, colheitadeiras, silos, pulverizadores, pivôs de irrigação, dentre outros, dependem de regras claras e de longo prazo, válidas por períodos mais longos, de pelo menos cinco anos", afirma Cogo.
Ao ser implementada, uma lei como essa poderia ainda contar com mecanismos previstos para amenizar os efeitos de momentos críticos da economia local, como o atual. De volta aos preços mínimos, suas referências não acompanham a inflação, por exemplo, enquanto os custos de produção são severamente influenciados por uma taxa que, atualmente, permanece em 7,29%, acima do teto da meta de 6,5% e ainda ainda mais distante do centro fixado para 2016, de 4,5%. "A chave de tudo é termos regras", completa Cogo.
Problemas Climáticos
Aliada a toda essa má gestão que ainda castiga a agricultura brasileira, as adversidades climática nesta temporada foram implacáveis e provocaram quebra em diversas culturas, como o arroz, o feijão, o milho, hortículas e frutas Brasil afora. Porém, Carlos Cogo volta a dizer que "o clima é um fator incomum, mas não justifica o desabastecimento".
Os preços do arroz estão em níveis recordes no Brasil, superando em cerca de 30% as referências do ano passado e já se aproximando dos R$ 50,00 por saca de 50 kg. O excesso de chuvas no Rio Grande, maior estado produtor do Brasil, provocou uma quebra de aproximadamente 25%, segundo um levantamento do IRGA (Instituto Rio Grandense do Arroz). A demanda, em contrapartida, está aquecida e levando, inclusive, algumas indústrias a limitarem suas vendas frente à falta de produto.
No entanto, como preços muito elevados são sinal de desequilíbrio, para os orizicultores a situação não foi diferente. Em entrevista ao Notícias Agrícolas, o presidente do Sindicato Rural de Tapes, Juarez Petry de Souza afirma que devido às perdas e, portanto, à falta de produto, muitos produtores ficaram impedidos de acessar o crédito oficial para financiar suas dívidas, agravando ainda mais o risco de desabastecimento, o que significa dizer é quase impossível aproveitar o bom momento dos preços. "Temos o temor de que esse alto endividamento reflita em uma nova redução de área com risco de desabastecimento", diz.
As adversidades climáticas também comprometeram todas as safras de feijão e a pouca oferta que, aos poucos, chega à comercialização é rapidamente negociada e o desabastecimento já é uma realidade. No varejo, os preços do grão são muito elevados e, ainda assim, todo o produto ofertado é rapidamente absorvido. O excesso de chuvas no Paraná, um dos principais estados produtores do Brasil, ou a falta delas em pontos de Minas Gerais, por exemplo, provocaram uma severa perda de produtividade. Dessa forma, como já relatou o presidente do Ibrafe (Instituto Brasileiro do Feijão), Marcelo Lüders, "pela primeira vez na história o Brasil está sem feijão".
"Neste momento, podemos dizer que, praticamente, não temos ofertas nas lavouras. Contra isso, estamos em uma semana forte de compra para o abastecimento das grandes redes devido às vendas de início de mês, chegando ao ponto de, em algumas regiões, já reportarem negócios na casa de R$ 550,00 por saca na roça, tamanha é a necessidade de compra de várias empresas", explica o corretor Juliano Seabra.
Na última semana, para tentar amenizar a gravidade do desabatescimento, o presidente interino Michel Temer liberou a importação do produto. No entanto, Carlos Cogo explica que essa é mais uma medida que não resolve o problema. "Não há como importar feijão carioca. Do consumo nacional de 3,3 milhões de toneladas, 75% são de feijão carioca. Segundo o presidente, a liberação da importação vale para Argentina, Paraguai e Bolívia, países vizinhos do Mercosul. O Brasil já importa feijão desses países há vários anos, mas o preto, de 150 mil a 350 mil toneladas por ano. A maior parte vem da Argentina e da China. Porém, segundo Alcido Elenor Wander, chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Arroz e Feijão, o problema é que a variedade mais consumida no Brasil, o carioca ou carioquinha, não entra nessa cota de "importados". Os outros países não produzem esse tipo de feijão. O carioca é um feijão tipicamente brasileiro. Criado, cultivado e consumido no Brasil. Não existe mercado para o produto fora do país".
As perdas no milho foram, talvez, as mais agressivas e, somente sobre a segunda safra, podem passar de 10 milhões de toneladas, reduzindo muito seu potencial produtivo e ficando, seguramente, abaixo de 50 milhões de toneladas. A estimatimativa inicial da Conab era, afinal, de 57,13 milhões de toneladas. A safrinha brasileira sofreu em todos os estados produtores e em todo o seu ciclo. As lavouras sentiram o excesso de chuvas no início do plantio, a falta delas e um calor intenso em seu desenvolvimento e, no final do ciclo, geadas e novos momentos de excesso de chuvas. Além disso, o Brasil se consolidou com um grande exportador de milho e isso também contribuiu para uma mudança no cenário desse mercado.
O consumo é forte, principalmente por parte do setor de granjeiros e da agroindústria - os quais ficaram com suas margens estranguladas - e os preços chegaram a níveis recordes, batendo em R$ 60,00 por saca em determinadas regiões. Em praças de Mato Grosso, por exemplo, onde já se falou em uma saca de milho a R$ 6,00, os preços superaram, com tranquilidade, os R$ 40,00 em pouco tempo. Com o avanço da colheita, as referências começaram a ceder em praticamente todo o país e devem seguir essa tendência ainda no curto e médio prazo. Entretanto, analistas de mercado afirmam que o problema do desabastecimento no caso do milho pode se estender até o próximo ano, o que poderia, portanto, trazer um reajuste para as cotações mais adiante, uma vez que a nova de verão ainda não está assegurada e também causa especulação para um mercado que já tão ajustado.
No ano passado, as lavouras de trigo, no Rio Grande do Sul, principalmente, que é o maior produtor do país, sofreu com o excesso de chuvas, perdendo produtividade e qualidade, reduzindo de forma significativa a oferta. Assim, daqui até setembro, quando se inicia a colheita no Paraná, e em seguida até outubro, com a colheita do Rio Grande do Sul, o mercado vê preços recordes - batendo em R$ 900,00 por tonelada e chegando a superar essa referência - com pouco produto remanescente para atender a força da demanda e mais o consumo adicional que chegou ao setor diante da falta de milho para a produção de ração. Apesar dos preços altos, os riscos da cultura são elevados e, por conta disso, produtores rurais e lideranças sindicais já indicam a possibilidade de uma redução da área de plantio do cereal, migrando para outras culturas de inverno, como aveia ou azevém, por exemplo.
"Os estoques remanescentes são de trigos de qualidade inferior. Isto está forçando as indústrias a importar mais trigo para abastecer a exigência da demanda. No caso do Paraná, por exemplo, um estado que não é importador de trigo, já vimos carregamentos de trigo de 11,5% e de 10,5% de proteína da Argentina para abastecer o mercado", relata Marcelo De Baco. "Com a migração do trigo para ração, os moageiros se viram obrigados a direcionar suas compras para as importações, por isto o volume importado, neste ano será maior do que os anos anteriores", completa.
Para o corretor, a demanda por rações impacta ainda uma outra excelência que o Brasil carrega que é a exportação de carnes de frango, bovina e suína. O país vem conquistando maior participação no mercado internacional, além de conquistar novos compradores. E o desabastecimento de itens como milho e trigo para a produção de alimentação animal ameaça essas conquistas, uma vez que pode reduzir a qualidade dos produtos e, consequentemente, a competitividade brasileira.